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Publicado em 27 de janeiro de 2021

Domínio do inglês e um pouco de sorte, levaram José Carlos Affonso Ferreira ao quadril

Em 1966, um dos professores convidados pelo prof. Marcondes, de Ribeirão Preto, para visitar vários serviços no Reino Unido, não pode aceitar o convite. O lugar do faltoso foi preenchido pelo José Carlos Affonso Ferreira, recém chegado de cinco anos de residência em vários serviços dos Estados Unidos. Acontece que no grupo de brasileiros o inglês era apenas razoável e o convidado de última hora era o único cujo inglês era ‘bom’.

Este domínio da língua não só fez Affonso Ferreira aproveitar ao máximo o contato com o ‘Papa’ da artroplastia total do quadril, John Charnley (1911-1982), em Wrightington, como lhe valeu a amizade dos residentes e dos membros da equipe e no fim acabou determinando a especialidade do jovem integrante de uma família que tem a Medicina entre seus genes. Fato interessante era que Chanrley era tão metódico que só permitia a participação dos residentes nas suas cirurgias, se eles soubessem de cor, todas as etapas, que metodicamente, eram feitas no ato cirúrgico.

Com quatro irmãos médicos, (no total são 18 médicos na família), Affonso Ferreira é responsável também pela formação de dezenas de ortopedistas do Brasil inteiro e que continuam ligados ao especialista que, além de tudo, participou na transformação do modesto ‘Comitê do Quadril’ na atual Sociedade Brasileira de Quadril.

O Quadril – Apesar de ser filho de médico e formado na mesma Faculdade que seu pai, consta que ele fazia piada quando lhe perguntavam sobre os filhos médicos. É verdade?

Affonso Ferreira – Sim. Meu pai se formou na faculdade Nacional de Medicina da Universidade do Brasil, em 1900, onde também me formei e foi um grande médico. Teve 15 filhos e era excepcionalmente bem humorado e quando alguém lhe perguntava, se todos os filhos estavam vivos, ele respondia que “não, cinco são médicos”. E meu avô também foi médico.

O Quadril – E porque a opção pela Ortopedia? Seus irmãos também tinham essa especialidade?

Affonso Ferreira – Pelo contrário. Meus irmãos me empurraram para a Ortopedia, porque era uma especialidade que não havia na família. A residência de ortopedia no Brasil, estava apenas começando, o que me levou em 1956 a iniciar Residência Médica em Ortopedia no Saint Francis Hospital, da University of Illinois. Fiz também treinamento no Memorial Hospital e no Hospital for Special Surgery, (N.Y.), nos Estados Unidos.

A pós-graduação foi na Allgemeines Krankenhaus, University, em Viena, na Áustria, em 1967.

Mas não imagine que era tudo uma maravilha, na época. Uma vez em Viena, onde os alunos saudavam o professor fazendo posição de sentido e batendo os calcanhares, um colega coreano, baixinho, comentou comigo que o ‘herr professor’ estava operando o quadril errado e, com muito medo alertei o mestre que não se deu por achado: “estou fazendo um procedimento profilático”, disse, depois de checar e comprovar na radiografia que tinha errado o lado.

O Quadril – E após a volta ao Brasil, já começou a trabalhar com quadril?

Affonso Ferreira – Não. Fiz doutorado na Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp, em 1976 e no início não havia como fazer prótese de quadril no Brasil. Imagine que o principal problema era a infecção e o próprio Charnley, operava dentro de uma verdadeira cabana de plástico, hermética, com ar condicionado, para fazer as primeiras próteses cimentadas. Aqui, não tínhamos nem o equipamento, nem as próteses e quando voltei de Memphis, em 1968, passei a fazer ortopedia geral, em Campinas, pois sempre trabalhei na minha cidade natal.

O Quadril – E como foi o início das próteses totais no País?

Affonso Ferreira – Foi lento e complicado. Das cirurgias horrorosas que se faziam no quadril, passamos lentamente para a prótese total cimentada, com Sérgio Rudelli, no início dos anos 70.

Em 1974, com a inauguração do Hospital Centro Médico de Campinas, considerei adequadas as instalaçãoes do Centro Cirúrgico e fiz a primeira prótese total, tipo Charnley.

Como trouxe de Wrightington um set de slides descrevendo os passos da cirurgia; antes de operar estudamos com a equipe as figuras projetadas na parede da sala de cirurgia, para familiarização.

Apesar da artroplastia total do quadril ter sido o marco mundial da Medicina no século XX, como no século XIX o foram a assepsia e a anestesia, tudo era difícil no Brasil.

Tive muita sorte de poder trabalhar no Hospital Centro Médico de Campinas, para o SUS, – na Santa Casa de Valinhos – e no Instituto Penido Burnier, enfrentando toda sorte de dificuldade para conseguir material.Em outra ocasião tinha comprado nos Estados Unidos, instrumental cirúrgico ortopédico, que me foi roubado na ida para o aeroporto, em Nova York. Por sorte o ladrão tinha alguma consciência e empacotou os instrumentos roubados, enviando-os para a Zimmer, que posteriormente me devolveu.

Fiquei indignado uma vez quando, sofrendo inúmeras carências em São Paulo, em 1962, fui visitar o Hospital de Base, em Brasília, e me mostraram um armário cheio de hastes intramedulares de fêmur. Eram umas 500, e nós em São Paulo, implorando por material.

O Quadril – E a SBQ, como foi o início?

Affonso Ferreira – Foi em 1981 com Gustavo Teixeira, iniciamos uma sociedade de quadril nos moldes das que existiam para pé e mão, ‘para agrupar médicos para estudar, desenvolver e divulgar os conhecimentos da articulação’.

Foi montado um congresso em Salvador, um sucesso, com 200 participantes e no ano seguinte, durante o congresso da SBOT, o grupinho inicial do quadril, do qual eu fazia parte, foi incumbido de montar um segundo congresso de quadril, em São Paulo, e de fazer o estatuto do que viria a ser a SBQ. Foi eleita uma diretoria com Rudelli como presidente, eu era o diretor científico.

Na época havia certo temor de que as sociedades de especialidade esvaziassem a SBOT, por isso em vez de Sociedade, nos tornamos Comitê do Quadril, filiado à SBOT. Assim o problema foi resolvido.

Continuamos a fazer nossos congressos. No de São Paulo, em 1986, fui eleito vice-presidente na chapa de Emilio Noel Cordeiro; no congresso de 1988, também em São Paulo, fui eleito presidente e tive a honra de finalmente transformar o Comitê de Quadril, já então com grande número de associados, na Sociedade Brasileira de Quadril.

O Quadril – Foi a partir dessa transformação que a SBQ começou a ser conhecida e respeitada internacionalmente?

Affonso Ferreira – Falando assim, até parece que foi fácil. Mas não foi. Tivemos um congresso planejado, que não pode ser realizado porque o Plano Collor congelou todos os recursos que tínhamos no banco. As crises sucessivas que o País vive sempre repercutiram e afetaram a SBQ, como agora a COVID afeta os projetos da Sociedade, mas nem ela nem seus associados pararam.

A SBQ se orgulha de jamais ter parado de exercer seu papel na Educação Continuada, pois continuamos a montar congressos, a realizar eventos e também a trazer para o Brasil os mais destacados nomes da cirurgia do quadril, para que falem e ensinem sobre a constante evolução da especialidade, sobre novos materiais, pesquisas e conhecimento. Tivemos também muito sucesso em manter os associados unidos nos mesmos propósitos, num País com condições extremamente diversas.

Por meio de Serviços de Formação Credenciados conseguimos que o cirurgião de quadril formado no extremo Sul tenha a mesma capacitação daquele que se especializa no Norte do País.

Pessoalmente, contribuí fundando em Campinas o Instituto Affonso Ferreira, em 1981, onde credenciado pela SBQ, formamos futuros cirurgiões do quadril e não só de quadril, pois o Instituto tem maior abrangência. Centro de referência que se tornou, está voltado não somente para as patologias do quadril, como também joelho, mão, pé, ombro e coluna.

O Quadril – E quando essa vida tão rica vai se tornar um livro? Porque você falou apenas da luta pelo desenvolvimento da SBQ, mas também na SBOT teve uma participação notável.

Affonso Ferreira – É verdade. Presidi a Comissão de Ensino e Treinamento – CET da SBOT de 1982 a 1994, o Comitê Brasileiro de Patologia do Quadril da SBOT, da qual fui o fundador e cheguei a fazer uma conferência, em que contei um pouco da História da Ortopedia Brasileira. Mas um livro biográfico, não creio que venha a fazer, apesar de certa pressão da família para que escreva.

O Quadril – E porquê?

Affonso Ferreira – Acontece que há cinco anos tive uma ressecção da corda vocal, o que tornou difícil e principalmente cansativo falar, que só consigo por alguns minutos. O entusiasmo pelo quadril, o acompanhamento e o interesse pela evolução da nossa especialidade, que é constante, isso não diminuiu. A dificuldade de expressar o que penso, todavia, e de por essas memórias por escrito, não sei se um dia farei.

O que sei e com certeza é que quando, há tanto tempo, assisti aos primeiros ‘milagres’ que John Charnley fazia a partir de sua ‘cabaninha’ hermética, com ar condicionado, decidi que o trabalho mais nobre que poderia escolher era o de cirurgião de quadril. E não me arrependi jamais. 


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